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'Como é possível?': Povos e Comunidades Tradicionais de Sergipe questionam texto do Zoneamento Costeiro do Litoral Norte

  • 01-08-2022

A participação popular ampla não é muito comum nos espaços de decisão política do Estado brasileiro por diversos fatores. A falta de preparo dos espaços para receber os povos é um deles. Mesmo num cenário de desigualdade, Povos e Comunidades Tradicionais de Sergipe participaram da Audiência Pública em que foi apresentada a Minuta do Zoneamento Ecológico Econômico Costeiro do Litoral Norte de Sergipe, que compreende os municípios de Pirambu, Japaratuba, Japoatã, Neópolis, Brejo Grande, Ilha das Flores e Pacatuba.

Marcada por limitação de tempo de fala e por falta de sensibilidade dos condutores com as colocações dos povos, a audiência teve o documento duramente criticado por dar prioridade aos segmentos econômicos capitalistas. Por outro lado, a força dos Povos e Comunidades Tradicionais ao saudar seus ancestrais e ao fazer as denúncias coletivas encorajou as lutas cotidianas nos territórios e demonstrou à sociedade sergipana o poder dos povos na ocupação dos espaços públicos e nas tomadas de decisões a respeito de políticas ambientais e territoriais.

“Eu queria questionar vocês sobre o artigo 9, no seu  inciso 3: Como é possível permitir que as zonas de uso restrito sejam utilizadas e assim legalizar atividades que degradam o meio ambiente? Como é possível?”, provocou Magno Oliveira, do Território Quilombola Brejão dos Negros. “É importante afirmar que as comunidades quilombolas sobrevivem do manguezal. Pedimos que essa construção possa respeitar nossas comunidades que serão as mais impactadas”, disse.

O professor da Universidade Federal de Sergipe (UFS) e coordenador do Programa de Educação Ambiental com Comunidades Costeiras (PEAC) Eraldo Ramos comemorou a realização da audiência enquanto espaço de expressão da sociedade civil acerca da elaboração de uma lei que vai se consolidar como uma política pública de estímulo ao planejamento ambiental e territorial da zona costeira de Sergipe, mas criticou o foco do documento, que deveria estar na permanência dos modos de vida tradicionais e na preservação de seus  territórios sagrados.

“Essa minuta desconsidera o direito dos Povos Tradicionais ao território e ao longo do seu texto a gente vê que o conjunto de dispositivos e de artigos valoriza fundamentalmente a expansão das atividades econômicas capitalistas de grande porte e são predatórias para esses ambientes que ecologicamente são muito dinâmicos, com riqueza natural impressionante, mas também de uma riqueza humana imensa”, refletiu.

Entre as sugestões de ajustes feitas pelos povos estão a retirada das partes do texto que favorecem a manutenção e expansão dos tanques de carcinicultura e a permissão de agroquímicos em zonas de proteção ambiental e de uso restritivo; e a inclusão da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), principal lei internacional, da qual o Brasil é signatário, e que estabelece diretrizes para a defesa dos Povos e Comunidades Tradicionais, dentre eles o direito à autoidentificação e à autodeterminação. A Convenção também prevê o direito à Consulta Livre Prévia, Informada e de Boa-fé quando megaempreendimentos e projetos do Estado forem se instalar em territórios tradicionais.

Sem mangue, sem caranguejo, sem gente

Se na zona urbana da capital sergipana o caranguejo parece ser valorizado com monumentos em áreas de turismo industrial, nos territórios tradicionais sua vida é ameaçada pelo que as comunidades chamam de projeto de morte: uma série de violações aos territórios tradicionais muitas vezes legitimadas por políticas públicas.

Líder comunitária do Território Quilombola Brejão dos Negros, Maria Izaltina criticou a PEC 269 de 2021 e expôs a hipocrisia no discurso de valorização do pescado. “Não tem como preservar o caranguejo se não preservar o mangue, onde o caranguejo está. O mangue é o berçário da vida marinha e da vida humana também porque nós somos sustentados por ele”, colocou.

A minuta de lei que foi apresentada na audiência se assenta na lei estadual8.634 de 27 de setembro de 2019, com redação conferida pela Lri Nº 8.925 de 22 de novembro de 202,  que institui a política do Zoneamento Costeiro do estado de Sergipe e que tem dois princípios essenciais: o de proteção aos Povos e Comunidades Tradicionais e o da precaução a  desastres ambientais de grande magnitude. No entanto, a pesquisadora Gabriela Murua, pós doc do Programa de Pós Graduação em Geografia e membra da equipe técnica do PEAC, afirma que o Gerenciamento Costeiro tem sido um espaço de legalização de empreendimentos que já estavam sendo instalados ilegalmente, a exemplo dos tanques de carcinicultura. 

“O que estamos vendo é um Estado que ao invés de fazer valer os direitos dos Povos e Comunidades Tradicionais estabelecidos em lei, legitima uma prática de exploração de megaempreendimentos dos territórios tradicionais, cujo objetivo é o lucro e não uma convivência harmoniosa com a natureza que respeita aquele espaço e o seu ciclo de produção e reprodução da vida”, declarou Gabriela.

De olho na lei

As comunidades também criticaram a forma como o documento foi apresentado, com leitura técnica e pouco diálogo, um ponto reforçado pelo advogado Henri Cley em entrevista à TV Opará. “A audiência pública poderia ter sido melhor se as comunidades tivessem tido tempo para expressar a sua angústia e os seus anseios. Em todo o caso, nós estamos vigilantes para que o desenrolar desse debate seja transformado em uma lei estadual que venha garantir os direitos dos povos tradicionais. Que proteja, preserve, disponha mecanismos de recuperação dos mangues”. 

A preocupação de Mauro Cibulski, do Movimento de Pequenos Agricultores (MPA) é principalmente com as outras etapas dessa disputa. “Esse debate foi muito importante, a questão é como se dá o desdobramento, já que alguns deputados se articulam com a carcinicultura, com os resortes e com a implementação de grandes empresas na região. Fato é que as comunidades deram um show na intervenção. Colocaram aquilo que sentem todos os dias”, opinou.

Após a audiência o texto segue com as sugestões feitas pelas comunidades para aprovação no Conselho Estadual de Gerenciamento Costeiro, composto por nove representantes de órgãos públicos do estado de Sergipe mais dois representantes de Povos e Comunidades Tradicionais. Do Conselho o documento do Zoneamento é submetido à votação na Assembleia Legislativa. 

“É fundamental que os textos acompanhem a legislação ambiental e de fato protejam essas comunidades tradicionais”, finalizou o professor Eraldo.