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17 de abril: Em louvor aos que seguem semeando a resistência

Se morrer é voltar para a terra, quer dizer que viveremos sempre. Toda energia se encontra presente. Onde nos matam e nos enterram (alguns pesarosos, porque não era pra ser assim), nossa força ancestral germina, resiste, sobrevive, se expande. Toda vez que semear for deixar uma marca, uma memória, um lar, uma força ancestral que não se apaga, que não se esvai. Assim, nesse abril vermelho, plantamos árvores, em gesto simbólico de homenagem e resistência: enquanto estiverem de um lado tirando a vida, do outro estaremos sempre a semear, em memória de quem sangrou na peleja. Fica sendo esse o nosso papel ancestral: trabalhar pela regeneração, pelo prosseguimento, porque nada escapa à transfiguração. Porque na Natureza nada se perde e tudo se transforma, toda vez que for um corpo, uma vida, também metamorfose - terra, água, fogo, ar - energia que em expansão se transforma em luta.

Reviver 17 de abril, o terror do Massacre dos Carajás. Não deixar a história se apagar - a que anda pelo vento, a que vai indo de boca em boca enquanto nos estendem uma colherada de abusivo silêncio. Lutar pelas nossas narrativas, para que não se esqueça. Chegamos novamente aqui, 25 anos depois.

Nesse mesmo dia, em 1996, emergia um protesto entre os sem-terra e outros manifestantes que estavam acampados às margens da Fazenda Macaxeira, na curva do S (em ocupação desde setembro de 1995), próximo a Eldorado dos Carajás. A luta pela desapropriação dessas terras desaguou numa violenta repressão policial, vitimando cerca de 21 manifestantes que estavam reivindicando seus direitos, além de 69 feridos pelos tiros. No episódio em questão, aproximadamente quatro mil pessoas, estavam numa marcha de 900 km rumo à capital, Belém, em protesto, quando foram violentamente interrompidas pela polícia, autorizada pelo secretário de segurança do governo a “atirar se preciso fosse”, a fim de desobstruir a rodovia BR-115, que ligava a capital ao sul do Pará.

Quem viveu esse drama é capaz de ainda ver sangue na velha curva do S, sentir a angústia diante do tormento das mulheres e crianças presentes nesse confronto - e o som dos tiros, das retaliações, que duraram horas que mais parecem anos eternos na memória das vítimas. Duas décadas após o crime, apenas duas pessoas envolvidas foram condenadas, os outros 153 policiais associados ao caso foram absolvidos e a impunidade em relação à violência no campo segue em disparada pelos quintais brasileiros.

Prova disso foi a última ameaça da PM aos atos simbólicos em homenagem ao Dia da Luta Campesina e em memória ao Massacre dos Carajás no acampamento Olga Benário, em Tocantins, noticiada recentemente no perfil do Movimento Sem Terra (MST). Aliás, o quadro atual da luta pelo direito à terra no Brasil não tem sido exatamente promissor: dando um golpe histórico no processo de reforma agrária (um direito constitucional) ao paralisar o total de 413 processos de desapropriação de terras e enxugar a estrutura do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), o presidente prefere priorizar seus amiguinhos da bancada ruralista, incrementando a verba para eles e extinguindo programas importantes, cortando a verba destes em 90% - caso do orçamento de 2021 para esse setor - como o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), que dava incentivos aos assentados, quilombolas e comunidades extrativistas.

Num país à deriva de um dos piores momentos da pandemia de covid-19, de volta ao mapa da fome - porque esse processo impacta diretamente o preço dos alimentos, problema que poderia estar sendo mitigado através da agroecologia, do cultivo coletivo da terra - assistimos horrorizados a toda tentativa de enfraquecimento e perseguição das lutas. Nos bastidores da pandemia, todos os covardes se encontram numa reunião ministerial, aspirando “passar a boiada” e mudar o regramento enquanto a mídia se atenta apenas ao coronavírus. Mas não era de se esperar menos de alguém que teve a coragem de defender, em 2018, em visita ao Pará, os PMs que assassinaram os trabalhadores rurais em 96, afirmando que “quem deveria estar preso era o pessoal do MST”.

Mas para falar sobre o massacre, precisamos entender a história de Eldorado dos Carajás, que é a história de um território que traz no bojo do seu nome o peso colonial, o choque entre culturas, visto que “Eldorado” é uma visão eurocêntrica que escancara o interesse europeu exclusivamente predatório dos minérios presentes na região, associado à uma mentira que descaradamente chamam de “lenda” e atribuem aos povos nativos, e que na verdade foi contada por um explorador espanhol, Gonzalo Jiménez de Quesada, nos relatos de suas expedições.

Certa vez, quando em contato com o povo muísca, no coração da selva Amazônica, durante um ritual no qual o pajé é coberto com ouro em pó, o explorador se vislumbra e confabula a existência de uma cidade feita de ouro, com o claro objetivo de impulsionar a corrida pelo minério em Abya Yala (essas tais “Américas”), pois o interesse em chamar um território indígena de Eldorado é um interesse branco, que comunica aos brancos o sinal de riquezas a serem exploradas - e incorporado à isso, simbolicamente, o termo indígena Karajá, que em Jê, tronco linguístico nativo, se constrói a partir de duas palavras: “kara”, brilhante, e “já” céu, que constituem o sentido da palavra “estrela”, influenciado pela aproximação da região com a Serra dos Carajás.

Uma terra marcada por processos de exploração, de colonização agrícola, latifúndio, mineração. Eldorado dos Carajás emerge de um contexto em que se via transformada numa área de esvaziamento demográfico na década de 70, quando a ditadura militar implantou o Programa Grande Carajás, projeto de extração mineral orquestrada pela Vale do Rio Doce, antes disso o território havia sido tomado e transformado num “empreendimento”, a fazenda Gleba Abaeté, toda a região já marcada pelos ciclos da borracha e das drogas do sertão. De todas as formas, o processo de invasão, apropriação e controle político-econômico dos territórios seguia a todo vapor. Para o povo, necas, ia sobrando cada vez menos espaço - e óbvio que quanto a isso houve reação.

Mas o que o massacre de 1996 representa é como um mecanismo de “controle” (violência estatal) pôde ser usado para reprimir uma luta como a do MST naquele momento, pois alinhado aos interesses dessas empresas, dos latifundiários e outras corporações que estavam sentindo seus planos ameaçados pela expansão e as conquistas do movimento, o Estado não hesitou em autorizar o ataque. Quer dizer, o episódio transcende o fato por escancarar uma coisa que parece ainda mais absurda: essa relação de interesses corporativos defendidos a todo custo e o uso da força policial como ferramenta de repressão e defesa desses interesses.

De quando em quando lembramos desses processos coloniais, a história do país que teve suas terras invadidas, roubadas e divididas em capitanias hereditárias, entre os colonos, depois sustentadas pelas oligarquias, os atuais latifúndios. Tudo o que junto ao capitalismo e seus mecanismos de manutenção só nos trouxe mais desigualdade, visto que o Brasil atualmente enfrenta uma das maiores concentrações de terra do mundo, prática endossada pelos governos sobre a desculpa de uma economia dependente do agronegócio.

Aliás, é graças a esse discurso que estamos perdendo boa parte dos biomas país afora, tanto pela contaminação do solo com o uso dos agrotóxicos (em 2020, 493 novos compostos químicos foram liberados) quanto pela expansão das fronteiras agrícolas. Conforme o Censo Agropecuário do IBGE (2017), quase metade de toda a área agrícola do país é ocupada por apenas 1% das propriedades. Das 5 milhôes de propriedades agrícolas no Brasil, 51 mil detém 47,6% de terras usadas para produção agropecuária, as pequenas propriedades ocupam apenas 2,3% desse valor.  Enquanto isso, a violência e os assassinatos no campo se intensificam dentro do processo: segundo dados do Instituto de Estudos Latinoamericanos (IELA), cerca de 2.507 camponeses e indígenas foram assassinados por motivo de conflitos agrários entre 1964 e 2016. E assim também seguem os dados da Comissão Pastoral da Terra, documentando 1.438 casos de conflitos no campo que ocasionaram o assassinato de 1.904 vítimas, entre as quais trabalhadores/as rurais, indígenas, quilombolas e posseiros, entre os anos de 1985 a 2017. A propósito, desde 1985 já se seguiram cerca de 43 massacres que devastaram 230 trabalhadores do campo em dez estados brasileiros (sem contar os casos que caem na subnotificação, que indicam que os números reais podem ser ainda maiores).

Por isso, quando falamos em reforma agrária popular compreendemos a defesa de um sistema mais justo, comprometido com o direito à terra para todos, a soberania alimentar, à resistência dos territórios de vida dos povos originários e quilombolas, ao equilíbrio da natureza, e principalmente com a justiça: a treta é sobre um território que nos foi roubado, sobre um povo que não é pobre, mas que foi empobrecido (já entoava a cantora mapuche Brisa Flow em seus versos de rap improvisado). Contra o racismo, o capitalismo, pelo fim da violência sistemática e todos os mecanismos de opressão. O dia da luta campesina também nos convida a demarcar: todo o país Pindorama é território indígena, todo o continente Abya Yala é território indígena. Se hoje há muitas terras nas mãos de poucos, encontremos na história o motivo pra isso.

Como toda semente que dá pé e tem seus frutos, a luta não parou. A fazenda Macaxeira, cujo proprietário é um dos mandantes do crime, foi desapropriada, hoje é o assentamento 17 de abril. A curva do S tornou-se lugar sagrado, onde foi construído o Monumento das Castanheiras Queimadas e anualmente acontecem homenagens às vítimas. Para que nunca se esqueça (de que lado devemos lutar).

Em louvor aos desolados, aos que seguem semeando a resistência.

Oziel Alves Pereira, presente!

Joaquin Piñero, falecido no último dia 12 de março, presente!

A todo coração que nos outros segue pulsando

 

*Helena Barbosa é integrante da equipe de Educomunicação do PEAC.

Foto: Arquivo MST