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Coronavírus, desmonte do SUS e desdobramentos para os Povos e Comunidades Tradicionais

  • 07-04-2021

Na foto, a enfermeira Mônica Calazans - a primeira pessoa vacinada no Brasil - uma mulher negra. Um alento seria pensarmos que, na prática, a imunização para as pessoas racializadas fosse mesmo uma realidade - sobretudo para os povos e comunidades tradicionais, historicamente vulneráveis e à margem do serviço público de saúde e outros direitos básicos. Com isso, quero dizer que, na verdade, essa foto demonstra o funcionamento do racismo estrutural brasileiro, que faz um slogan de democracia racial enquanto o que está racializado é a política de morte, enquanto do outro lado quem mais morre continua sendo preto e pobre.

Isso muito precisamente analisa o psicólogo Emiliano de Camargo David, integrante do Grupo Temático Racismo e Saúde, que compôs a mesa sobre Democracia e Participação Social ao lado do jornalista indígena AIlton Krenak e da midialivrista Leandrinha Du Art, no último Congresso Brasileiro de Política, Planejamento e Gestão de Saúde, realizado em março.

Presentemente, no ano em que o Brasil já supera a alarmante soma de 13 milhões de casos de covid-19, viemos anunciar, com muito propósito: 07 de abril demarca o Dia Mundial da Saúde, e na oportunidade, é de bom tom que sublinhemos a importância de defender o nosso Sistema Único de Saúde, democrático e popular como o conhecemos, ainda que com todas as falhas internas. Eis a provocação: o que temos acumulado em 30 anos de SUS? Sendo a saúde um direito de todos, será que de fato todos conseguem ter acesso?

BREVE HISTÓRIA DO SUS

O Sistema Único de Saúde (SUS) é fruto de uma mobilização e luta política histórica para a então "democracia brasileira". Essa história de desigualdade no país existe desde um tempo antigo, mesmo tempo no qual todos temos resistido: há mais de 500 anos, quando nosso território foi invadido pelos europeus, que consigo trouxeram doenças que devastaram 90% dos povos originários, habitantes que os antecedem há muito nessas terras. A partir daí, as raízes das relações de poder seguem no bojo de uma dinâmica de acesso que ao longo dos séculos sempre se baseou em negar direitos e perpetuar a exclusão da população mais pobre, autorizando entrada apenas pela iniciativa privada, ou seja, saúde só pra quem tinha muito dinheiro, a elite.

Até a redemocratização pós-ditadura, a assistência só era garantida àqueles que podiam pagar ou a quem já tivesse carteira assinada - a estrutura pública de saúde era precária, reduzida e destinada a quem contribuía com a previdência. O resto da população ficava à própria sorte, na indigência, ou na esperança de encontrar alguma ajuda em hospitais universitários e instituições filantrópicas - lhes restava, em contrapartida, os cuidados baseados nos conhecimentos ancestrais que infelizmente nem sempre puderam dar conta das graves doenças a que eram acometidos, como conta o ex-ministro da Saúde (Roussef/PT) Arthur Chioro em entrevista à matéria de 30 anos do SUS, do Brasil de Fato.

Somente em 1990, após uma inusitada pressão pela inclusão social e o direito universal à saúde, influenciada pelos movimentos de Reforma Sanitarista da década de 70, que pensavam mecanismos de proteção contra a privatização e levantaram a bandeira da integralidade, como coloca o professor Nelson Rodrigues dos Santos, qualquer um passava a ter atendimento garantido em qualquer esfera. Um ano antes, na intenta das devidas reparações históricas, o SUS era um dos pontos centrais da Constituição de 89.

A partir daí se abriu espaço para algum desenvolvimento social no país, pois as políticas públicas aumentaram a expectativa de vida do brasileiro: a taxa de mortalidade infantil caiu em 70%, ampliou-se o acesso a atendimento pré-natal, houveram mudanças nas clínicas psiquiátricas, nas ações de combate a doenças, mais acesso a remédios, transplantes e tratamentos e a vida da população em geral. Hoje, independente de qualquer condição social, todos temos direito à um atendimento no SUS, o que, sem dúvida alguma, configura uma verdadeira conquista e revolução social.

CONJUNTURA NACIONAL DA SAÚDE

Mas é fato que mesmo previsto na CF um investimento de 30% da seguridade social para o SUS, isso nunca chegou a ocorrer, por inúmeras questões burocráticas institucionais de repasse de verba, e todo investimento sempre foi insuficiente. Todo o contexto se agrava ao lembrarmos da PEC 95, imposta pelo governo Temer (PMDB), que congela o teto de gastos em setores de direitos fundamentais para o povo e no que a isso se somou em seguida, a ingerência do governo Bolsonaro e todas as suas "trapalhadas" na área da saúde desde então,  dentro de um contexto imprevisível de pandemia da covid-19 que emergiu no país.

Tudo isso fez com que entrássemos na maior crise sanitária que já enfrentamos, pois a estrutura do SUS, que antes já apresentava precariedades, déficits e pouco investimento, com a demanda atual passa a se sobrecarregar e beirar o colapso e a saturação total. O histórico de sucateamento só se evidenciou ainda mais depois da pandemia, e somado à outras perversas medidas que vem sendo tomadas pelo governo atual, as contradições se acentuam e a população mais vulnerável, novamente, é quem sofre os impactos.

Vimos irromper mais uma ameaça desse governo de extrema-direita aos nossos direitos essenciais, agora com o desmonte do SUS através de um decreto assinado pelo presidente que anuncia a privatização das Unidades Básicas de Saúde (UBS) por meio do Programa de Parcerias de Investimento da Presidência da República - pois um administração privada significa um passo ainda maior para uma muito em breve privatização total do sistema, que vai totalmente contra o objetivo de natureza popular e universal do SUS quando foi criado há 30 anos atrás.

Além disso, dentro dessa conjuntura, os povos e comunidades tradicionais também seguem como alvo preferencial dos ataques do governo Bolsonaro, a exemplo do recente episódio de vetos que ele fez a direitos essenciais para essa população dentro do Plano Emergencial para povos e comunidades tradicionais durante a pandemia da covid-19, querendo inviabilizar, entre os quais: o direito a leitos, acesso à água, distribuição de cestas básicas, material de higienização, e desinfecção nas aldeias, a obrigação de comprar ventiladores e máquinas de oxigenação, entre outros.  Ao todo foram 16 vetos, todos derrubados pelo Congresso. Essa é só mais uma, das tantas provas que existem, de que o governo Bolsonaro não defende e não se interessa em proteger a vida e territórios dos povos tradicionais.

MORTOS POR COVID-19 OU VÍTIMAS DE GENOCÍDIO?

O que o coronavírus representa para essa população, e a negligência do Estado alimenta isso, é a continuação do genocídio iniciado há 500 anos atrás. Muitas comunidades tem perdido seus anciões, alguns são os últimos de seu povo, e com eles todos os vestígios da cultura, língua e saberes se vão para sempre. Muitos tem restringido ou suspendido seus rituais fúnebres, por conta dos protocolos. E ainda precisam conviver com toda a pressão de seus territórios em disputa, que, para eles, também representam saúde. Nos bastidores do isolamento, os processos de desmatamento tem ganhado força ao redor do país inteiro, já são mais de 2,4 mil hectares de florestas devastadas segundo dados do Instituto Socioambiental (ISA). Nas palavras de Thaynara Sipredi, representante da Articulação Brasileira dos Indígenas Psicólogos (Abipsi), em live do Conselho Nacional de Saúde sobre Povos Tradicionais: "não existe saúde sem meio ambiente e território protegidos".

Fica evidente, então, que uma perspectiva de genocídio realmente assola a população. De acordo com as últimas atualizações da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), os casos confirmados de covid-19 entre indígenas já chegaram a mais de 45 mil e mais de 900 perderam suas vidas para o vírus, que já circula por comunidades de 161 povos. Além disso, conforme monitoramento da Coordenação Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), ao menos 192 quilombolas foram mortos pela covid-19 e mais de 4.897 foram infectados no país.

Quando uma nação registra duas vezes mais pessoas brancas vacinadas que negras (dados do site Agência Pública), algo de errado não está certo aí, as coisas se contradizem, porque os negros são o grupo racial mais contaminado pela covid-19. Quando o sistema dá indicadores de que ainda é excludente para determinados grupos, quando se deixa o setor privado dominar uma conquista popular, cai por terra a ideia que temos de democracia.

No último Congresso Brasileiro de Política, Planejamento e Gestão de Saúde, o jornalista e líder indígena Ailton Krenak, analisando o cenário de acesso ao serviços de saúde, alertou: não estamos numa democracia, mas sim em um estado totalitário, vivendo uma experiência de abuso sistemático. O Estado pode se armar até os dentes para invadir nossos territórios, ameaçar a gente, nossos corpos ou nosso imaginário [...] Com isso, o povo desse país está é vivendo uma suspensão de direitos".

Vivemos um cenário de desmonte de nossas conquistas históricas, de violência estrutural: violência que é uma gramática e uma política. À semelhança do que refletiu a escritora negra e colunista da Claudia Online, Juliana Borges, muito recentemente num texto do Instagram, em seu perfil: "o Estado não é ausente. Está presente, posto que a Polícia (repressora) é instituição do Estado. Não há ausência, há uma atuação constante para precarização, marginalização, controle, punição e extermínio. Essa é uma disputa importante: que tipo de Estado queremos? E por isso disputamos governos, reivindicamos a CF88, marco importante ao buscar construir um Estado promotor de direitos e não executor de violências. Por isso lutamos por mudanças estruturais".

E por isso, a data de hoje vem para que sublinhemos a importância de defender o Sistema Único de Saúde, reoxigenando a memória de nossas lutas, fazendo parte delas, denunciando as contradições e se apropriando dos espaços que são nossos por direito. Embora pareça assombroso chegar até aqui com tudo o que temos visto acontecer, precisamos crer e entender que toda luta é pela vida, e por isso mesmo, devemos acreditar que enquanto houver vida, e territórios de vida, podemos botar fé que em coletividade venceremos.

*Helena Barbosa é integrante da equipe de Educomunicação do PEAC