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No Dia Mundial da Água, é preciso não dar de comer aos urubus: "tenotã-mõ!"

Acompanha esse texto uma foto: a guerreira Tuira Kayapó, no I Encontro dos Povos Indígenas do Xingu, em 1989. Nesse episódio histórico para as lutas dos povos originários, a jovem - que assistia junto ao seu povo um debate sobre a construção da hidrelétrica de Kararô, hoje Belo Monte - encosta um facão junto ao então presidente da Eletronorte, José Antônio Muniz Lopes, proferindo, em defesa do seu território, com indignação, em língua nativa o grito Kayapó de luta: “Tenotã-mõ”, aquele que segue em frente.

Desse gesto simbólico de resistência tiramos força e coragem para anunciar nesse Dia Mundial da Água a lamentável situação em que se encontra o nosso país-Pindorama: no ano em que chegamos a um nível crítico de pandemia da covid-19, o governo federal aprova um projeto de lei que transforma a água, nosso bem-comum e direito intransferível, em mercadoria, através do Novo Marco do Saneamento, que privatiza esse serviço em todo território a partir de março de 2022 e que impiedosamente vai excluir a parcela mais vulnerável da população: um tipo irresponsável de decisão, que visa essencialmente o lucro de muito poucos.

Além disso, o Brasil vem passando por um acúmulo de ataques ao meio ambiente, desde o total desmonte dos órgãos ambientais, com direito a militarização e flexibilização das leis, recordes históricos de queimadas em nossas florestas, crises hídricas emergindo em diversas regiões, racionamentos severos, rios contaminados por agrotóxicos e substâncias oriundas de mineração, crimes como o rompimento da barragem de Mariana e toda a devastação do litoral nordestino pelo vazamento de petróleo - e enquanto isso, um governo negacionista, genocida, de extrema-direita segue tocando a agenda ultraneoliberal no país, acelerando todo o processo de destruição da natureza, indo na contramão do enredo do que comprometeu-se a cumprir em 2015, durante a conferência da ONU, de onde surgiu o Pacto Global e a Agenda 2030.

É desse contexto que partimos para debater sobre a questão da água aqui nas terras-tupiniquins,  território que abriga cerca de 14% de toda a reserva de água doce do planeta. Mas, para pensar as raízes desse problema, é preciso mencionar todo o histórico de violências presente em seu bojo, que começa do divórcio entre o homem e a natureza, quando este passou a vê-la como propriedade privada, estabelecendo aí a primeira relação de poder e dissociação, a raíz de todo o desequilíbrio que vivenciamos hoje. Da Europa, isso se espalha de forma extremamente violenta pela colonização, que invade e explora os bens naturais de outros territórios, sequestra, escraviza e mata seus povos, e impõe seu modo de vida predatório.

Nos conta o escritor uruguaio Eduardo Galeano, no prefácio de Veias Abertas da América Latina, sua mais celebrada obra: "Essa triste rotina dos séculos começou com ouro e prata, e seguiu com o açúcar, o tabaco, o guano, o salitre, o cobre, o estanho, a borracha, o cacau, a banana, o café, o pretóleo... O que nos legaram esses esplendores? Nem herança nem bonança. Jardins transformados em desertos, campos abandonados, montanhas esburacadas, águas estagnadas (...) Continuamos aplaudindo o sequestro dos bens naturais com que Deus, ou o Diabo, nos distinguiu, e assim trabalhamos para a nossa perdição e contribuimos para o extermínio da escassa natureza que nos resta. Exportamos produtos ou exportamos solos e subsolos?"

E em resposta, temos que o Brasil envia para o exterior, aproximadamente 112 triões de litros de água doce por meio da produção de commodities agrícolas. Por sinal, é o agronegócio o setor que mais consome a água do país, o equivalente a uma proporção de 70% do consumo, seguida das  indústrias, como consta em relatório da UNESCO (2018) e da Agência Nacional das Águas (ANA).

Especialistas já apontam que uma das principais causas para a crise hídrica é o uso inadequado do solo. E o Brasil é esse país de economia agrícola, a monocultura e o desmatamento -  que devassam os biomas e contaminam o corpo dos rios com agrotóxicos. Segundo a pesquisadora Isabel Figueiredo, o desmatamento desenfreado tem impactado na frequência das chuvas e na capacidade de absorver e armazenar a água no subsolo e devolvê-la aos rios, já que as florestas funcionam como "rios flutuantes", são os nossos reservatórios e guardiãs de importantes aquíferos. Ademais, os biomas e ecossistemas brasileiros ´estão todos conectados - o que acontece em um impacta o outro.  A forma como estamos urbanizando e impermeabilizando o solo compromete o ciclo da água. Para ela, já estamos passando por um pequeno colapso.

De acordo com o mesmo relatório, as indústrias são responsáveis por 7% da vazão consumida no Brasil, o que equivale a 1161m³/s. Muito além do consumo, porém, quando falamos na questão hídrica do nosso país, incluimos aí a questão do saneamento. Isso porque os esgotamentos desembocam nos rios sem tratamento algum (apenas 46%dos esgotos gerados no Brasil são tratados), o que também afeta os ciclos da água. Conforme dados do Atlas Esgotos, a falta de saneamento compromete mais de 110 mil km de rios brasileiros que recebem os dejetos. Nas palavras do ambientalista indígena Ailton Krenak, autor de Ideias Para Adiar o Fim do Mundo, "os corpos d´água deveriam ser preservados dessa violência sanitária".

Krenak analisa que "a ideia capitalista de que alguém pode estragar um rio com o esgotamento e depois criar estações de tratamento para reprocessar é uma ideia insustentável". Eis o que ele chama de mito da sustentabilidade! :)

Sendo o Brasil um território de proporções continentais, composto por doze regiões hidrográficas, cada região passa por diferentes desafios para manter sua disponibilidade e qualidade hídrica. Conforme mapeamento do Ministério do Meio Ambiente, as bacias que abrangem a região Norte sofrem impactos especialmente ocasionados pela expansão da geração de energia hidrelétrica e a região Centro-Oeste pelo avanço da fronteira agrícola. Não obstante, as regiões Sul e Nordeste tem enfrentado déficits hídricos, e no Sudeste apresenta, além disso, também o problema da poluição hídrica, vivenciando um quadro de estiagens e consequente racionamento desde 2014.

Diante desse cenário, a disputa por água já é uma realidade. No Brasil, cerca de 35 milhões de pessoas não tem acesso  a esse serviço básico, e todos eles possuem raça, classe e endereço - é a parcela mais negligenciada da população, que frente ao acirramento das precariedades segue sendo também a mais prejudicada.

Na iminência ou na falta da água, já foram registrados aproximadamente 489 conflitos em 2019, conforme relatório da Comissão Pastoral da Terra (CPT), geralmente ligadas a ataques vindos de setores da mineração, hidrelétrica, agronegócio e empresários, como aponta o documento. Os crimes ambientais do rompimento da barragem de Brumadinho e o vazamento de petróleo na costa nordestina contribuíram para o aumento desses conflitos. No Brasil ocorre um conflito por água a cada dois dias, segundo dados do CPT.

Mas o que entra em questão nessa disputa transcende a questão de acesso a um direito negado, se trata também de uma questão territorial. Com o capitalismo em crise, somos alvos prioritários da estratégia de ampliação da exploração a qualquer custo. Aprofunda-se nesse momento as desigualdades e a destruição da natureza, e junto, vão os modos de vida dos povos e comunidades tradicionais, em sacrifício, como plano de salvamento do capital.

À semelhança do que foi expresso na última carta do Fórum Mundial Alternativo da Água, em 2018, o que desejam as corporações através dessas disputas e privatização é a invasão, apropriação e controle político e econômico dos territórios, nascentes, rios, reservatórios para atender aos interesses de quem lucra sobre isso (empresas de agronegócio, hidronegócio, mineração, especulação imobiliária, energia hidrelétrica, etc).

E são os povos e comunidades tradicionais que veem na água algo assim como um parente - algo assim como os Krenak ao tratar seu rio Watu por "nosso avô" hoje em coma, algo assim como as filhas de uma brasileira que vão em silêncio cedo do dia cantar para as águas, algo assim como o povo Tremembé, que acredita que onde a água está presente, ele também está - que resistem levando essa prática, esse trato, essa cosmovisão ancestral, porque entendem que antes mesmo de existirmos a água já estava aqui, nos antecede (é senhora, é célula e força, pulsão ancestral), porque entendem a água como parte de tudo o que é vida. Aqueles que creem que todas as águas são uma só água, em permanente movimento e transformação. Água é entidade viva, tem personalidade - e merece ser respeitada. Tudo o que a atinge, nos atinge. E, dessa forma, o direito à água não pode ser antropocêntrico.

E esse tal antropocentrismo, que chama a água de "recurso", já entrega aí a forma como é tratada, reduzida à mera mercadoria a seu desserviço e bel prazer. O antropoceno já tem interferido demais na vida, não só humana. Graças às nossas ações, estamos inviabilizando a existência de diversas outras espécies. Mas há, ainda alguma esperança nesse front: a boa notícia é que alguns países tem avançado sobre essa questão do direito ecocêntrico, como os hermanos inspirados pelo movimento do Bien Vivir na Bolívia e no Equador, e as culturas ancestrais na Índia e na Nova Zelândia, que já consideram a natureza como pessoa, com direitos e proteção jurídica.

No Dia Mundial da Água, última segunda-feira (22/03), celebramos essa dádiva cósmica, mas é preciso não dar de comer aos urubus: denunciamos os ataques, as violências, os desafios e direitos negados que vivenciamos cotidianamente.

Lembramos também a morte de Paulo Sérgio de Almeida Nascimento, um dos diretores da Associação dos Caboclos, Indígenas e Quilombolas da Amazônia, Cainquilama, uma entidade que luta pelos direitos dos moradores locais, índios e descendentes de escravos- assassinado a tiros no dia 12 de março, há cerca de três anos atrás.

Lembramos principalmente o dever de continuar a fortalecer e se manter em peleja pela nossa soberania. E nós, povo de Abya Yala, ainda que abatidos, carregamos em nossos corpos ancestrais a determinação. Debaixo de nós, e em nós, é vida o que ainda corre. Como ia dizendo a parenta Tuíra Kayapó:  "tenotã-mõ", sigamos em frente!

*Helena Barbosa é integrante da equipe de Educomunicação do PEAC