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A natureza não é nossa, nós é que somos dela - apontamentos a respeito do Dia Nacional de conscientização sobre mudanças climáticas

Amanhecemos aqui, sobreviventes, neste 16 de março que desponta. Cantam os galos, passam os carros, ônibus lotados, desde ainda muito cedo. Não fossem as máscaras, a vida nos viria como mais um dia normal de labuta - mas em suspensão algo acontece com o mundo inteiro ao mesmo tempo, nas vastas partes como um todo, numa espécie de movimento ruidoso-silencioso que se manifesta sobre outras formas, em dimensões maiores do que alcançam as nossas vistas, mas tanto sentem as nossas peles. E aqui no país tropical demarcamos a data de hoje como dia nacional de conscientização sobre mudanças climáticas, quem sabe um ótimo dia, ensolarado ;)) para refletirmos sobre todo o processo histórico que envolve o fenômeno do aquecimento global, na oportunidade de atearmos novos olhares (decolonizados) para a forma como vivemos atualmente e analisar o acúmulo de impactos, desafios e resistências que surgem em paralelo a tudo isso.

Antes de tudo, é importante comentar que nos encontramos em uma conjuntura político-ambiental pra lá de trash, sob o jugo de um governo de extrema-direita, que promove desmontes de todas as ordens a torto e a direito no país. Passamos por um cenário quasemente de um Brasil-distopia quando nos damos conta de que as matas (Amazônia e Pantanal) do país já bateram recordes históricos de queimada no ano passado enquanto o agronegócio só avança, e os nossos órgãos ambientais foram tomados pela militarização, e nos últimos anos o país tem sua legislação ambiental arbitrariamente flexibilizada e aqueles que defendem e protegem os biomas veem-se invariavelmente acometidos por perseguições e ataques dos mais diversos, chegando a ser culpabilizados pelo próprio presidente desta Navilouca, o qual lá fora, por sua vez, afirma que não há nada de errado acontecendo no país, surfando pra valer na onda do negacionismo. Enquanto isso, nossos animais, nossas florestas e nosso povo é sacrificado em prol de uma agenda ultraneoliberal, que em nome do lucro é capaz de passar por cima de qualquer coisa, afinal, e daí, não é?

Todo o processo de avanço do capitalismo e de desmonte do quadro ambiental brasileiro compromete não apenas os seus residentes, como também põe em jogo toda a logística ambiental do planeta, influenciando diretamente no fenômeno das mudanças climáticas, já que o desmatamento e os incêndios florestais  já são responsáveis por quase 80% das emissões brasileiras dos gases causadores do efeito estufa e as florestas são de extrema importância para o controle da temperatura global. Nas palavras do ambientalista indígena Ailton Krenak, "diante dessa violência programada pelo estado brasileiro de devastação ambiental a gente sai de um contexto de debates sobre mudanças climáticas e entra numa questão política grave".

Mas nem sempre foi assim na história desse mundo que arriscamos perder. Vivemos hoje o momento do antropoceno, que contextualiza a era no qual o ser humano modificou o planeta de tal forma que substitui a natureza como força ambiental dominante na Terra. Para entendermos as raízes desse problema precisamos voltar a 1492, data que demarca o começo da destruição das populações ameríndias e o imperialismo biológico (desapareceram entre 85% e 95% das populações ameríndias desde a invasão das Américas), assim como suas agriculturas diversificadas e florestas sagradas.

O antropólogo colombiano Luiz Luna, no ciclo de estudos sobre a vida selvagem 2018, sustenta que esse drama foi a primeira razão do aumento do dióxido de carbono; e em 1610 registra-se o primeiro aumento, seguido pela Orbik Spike da onda consumista, da chamada "grande aceleração", boom demográfico e industrial dos anos 50.

Nessa palestra, após ler fragmentos do requerimento, documento oficial de perseguição, exterminação e escravização dos povos indígenas em prol de um "descobrimento ocidental" e da religião cristã, Luna aponta que o pensamento monoteísta relaciona-se diretamente com a maneira de separar tudo sistematicamente, ao contrário do pensamento ameríndio animista, que preza pela biodiversidade, pois "as plantas se comunicam e trocam nutrientes". O antropólogo conclui propondo que, na crise do antropoceno, o pensamento indígena animista é uma porta. "É preciso aproximar-se desse pensamento e da natureza. Animismo não é uma filosofia idealista, é um contato absoluto direto, e é assim que você descobre a inteligência das espécies sagradas. Tudo é inteligente, tudo está vivo se há memória e consciência (plantas, animais, entre outros organismos não-humanos)."

Antes de vir a ser o rebu que vemos agora, numa época de mais equilíbrio e conexão entre o homem e a natureza, e isso ainda segue presente numa imensa parte das culturas e cosmologias dos povos originários, entendíamos a nós mesmos como vida, como natureza, conjuntamente.

O mais próximo disso, da compreensão da vida como uma coisa integrada, é a hipótese de Gaia, criada na década de 70 pelos cientistas James Lovelock e Lyinn Margulis, e sustentada pelo ambientalista indígena Ailton Krenak.

Nesse sentido, Gaia, o planeta onde vivemos, é entendida como um supraorganismo que tem capacidade de se regenerar e que possui consciência. Isto é, ainda que alguns pedaços de Gaia morram, ela conseguirá se reestruturar.

Isso significa que a questão sobre as mudanças climáticas não é exatamente se o mundo vai acabar, muito mais provável é que, antes, findemos a nós mesmos. Nossa preocupação é se continuaremos a fazer parte de Gaia, e essa é uma escolha nossa. Estamos no que chamam "a Sexta Grande Extinção" depois do último meteorito que colidiu com a Terra. Desaparecem, por dia, mais espécies do que podemos ter notícia (cerca de 200 a 350 espécies). Em 2017, calculava-se que sumiram 40 campos de futebol de reserva de florestas tropicais a cada minuto durante todo o ano.

Segundo o ecólogo Fábio Scarano, a capacidade regenerativa está presente no planeta. Numa palestra dada durante o ciclo de estudos sobre a vida selvagem, mediada por Ailton Krenak, ele cita o teórico da hipótese de Gaia: "já dizia Lovelock, quer o ser humano esteja aqui ou não, por um bom tempo, Gaia vai continuar aí".

O cientista, especialista em fotossíntese, estuda possibilidades de regeneração da natureza através de plantas facilitadoras (espécies específicas de clúsias e bromélias) que modificam sua função fotossintética através de um processo de exaptação ou de resgate a um mecanismo fotossintético ancestral para sobreviver numa circunstância mais extrema (no caso das bromélias), e afirma que esse tipo de 'regenerante" se encontra em grande quantidade na natureza: "a evolução não é uma espécie de progresso, não é algo linear, ingenuamente  eu achava que era".

Ele defende que devemos seguir combatendo as mudanças climáticas, mas ao mesmo tempo também precisamos nos adaptar, pois de uma forma ou de outra, ainda que parássemos os agravantes do efeito estufa nesse momento isso não impediria o planeta de até 2100 aumentar um pouco mais a sua temperatura, segundo dados do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas IPCC.

O ambientalista indígena Ailton Krenak questiona: o desenvolvimento sustentável é um dispositivo interno ao capitalismo, ao mundo da mercadoria. "A sustentabilidade é um mito oportunista que serve ao capitalismo. Como pode ser sustentável destruir a floresta Amazônica ou a Mata Atlântica? O agronegócio é sustentável? O garimpo e a mineração são sustentáveis? A ideia de sustentabilidade não passa de uma malandragem capitalista [...] O século XX ainda não acabou, ele contaminou o século atual. Estamos empacotando para as gerações futuras um mundo velho e estragado." Em seu livro mais popular, Ideias para Adiar o Fim do Mundo, o autor nos faz refletir sobre que mundo estamos empacotando para as gerações do porvir e nos revela a crise pela qual passamos globalmente.

De um jeito ou de outro, todos eles apontam para um caminho, o único que se conhece até então como um caminho possível: é pensando a retomada, essencialmente anticapitalista e antipredatória, de conexão e reconciliação entre o homem e a natureza, apostando em novas posturas e padrões de consumo, de relação com a terra, pela união entre os saberes acadêmicos e ancestrais e o reconhecimento sobre essa ancestralidade que todos nós carregamos e que nos une, como relembra o rapper guarani-kaiowá Kunumi MC: a natureza não é nossa, nós é que somos dela".

Abaixo os distúrbios zoológicos, pois nós também somos animais, e estamos causando muitos estragos que afetam a vida de outras espécies, e não temos nenhum direito de fazer isso. Como ia dizendo o Luiz Luna, em seu protesto tímido: cada espécie é sagrada e a Terra é sagrada, precisamos trabalhar pelos direitos da Natureza, nuestra Madre-Tierra."

*Helena Barbosa é integrante da equipe de Educomunicação do PEAC