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Há quase dois meses, os povos e comunidades tradicionais do litoral nordestino sofrem com os danos inestimáveis e irreparáveis, decorrentes do aparecimento de grandes manchas de óleo cuja origem segue desconhecida. São povos que dependem da pesca, da mariscagem e do extrativismo para garantir o sustento de suas famílias e dos territórios onde vivem. Já são mais de 2 mil quilômetros atingidos até o momento - todas as 17 praias do litoral sergipano foram afetadas e somente em Aracaju, já foram recolhidas mais de 231 toneladas da substância.
Devido à gravidade da situação, representantes de mais de 80 comunidades costeiras de Sergipe e de dois municípios da Bahia – Conde e Jandaíra – participaram de audiência pública na manhã desta sexta, 25, na sede da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/SE), no centro da capital sergipana. A audiência pública representou a culminância de uma missão conduzida pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) em diversas comunidades, como a Comunidade Quilombola de Santa Cruz, no município sergipano de Brejo Grande, no litoral norte, e a comunidade de Siribinha, no município de Conde, na Bahia.
Povos e comunidades tradicionais de Sergipe e da Bahia participam da audiência. / Foto: Jhennifer Laruska
Realizada, a audiência foi um momento fundamental para que as/os representantes das comunidades atingidas pelo óleo pudessem expor os impactos diretamente sofridos e reivindicar providências por parte do Poder Público. Os depoimentos relatados durante a audiência irão compor um relatório da CNDH.
IMPACTOS
Durante a audiência pública, foram projetadas imagens dos impactos causados pelo derramamento de óleo nos territórios do litoral nordestino. Também foram expostos pacotes com fragmentos do óleo encontrado nas comunidades visitadas pela missão da CNDH.
Em representação às comunidades presentes à audiência, a pescadora e agricultora Maria Izaltina, presidente da Associação Quilombola do município de Brejo Grande, ressaltou a necessidade de providências rápidas e urgentes, bem como o respeito aos modos de vida que dependem diretamente da natureza para a sua reprodução social. “São milhares de famílias de todo o litoral e da restinga que foram obrigadas a parar de pescar, de mariscar e de comercializar por conta de mais um crime ambiental causado pela exploração de petróleo. O Poder Público precisa se atentar e tomar providências urgentes. O nosso trabalho alimenta milhares de famílias e hoje eu sou os olhos dos pescadores e a voz dos quilombolas, porque sei o que é estar na lama”, destacou Izaltina.
Na percepção das/dos representantes de povos e comunidades tradicionais que vivem nos territórios atingidos, o aparecimento das manchas de óleo revela impactos mais profundos do que as questões visíveis a olho nu, como as dificuldades de dar continuidade às atividades produtivas realizadas pelas famílias pescadoras.
“Muitas de nós dependem do marisco, da pesca e da mangaba para sustentar as famílias. Com a contaminação do óleo, as pessoas em Aracaju não querem mais comprar nosso pescado, todos estão com medo. Além disso, estamos impedidas de continuar com outras atividades. O povoado onde moro vive do turismo também, e os turistas além de não quererem mais comprar o pescado, não querem mais visitar nossa praia”, afirmou a pescadora Josefina Santos, moradora do povoado Pontal, em Indiaroba.
Além da contaminação das praias, a redução do pescado e a salinização das águas dos estuários e dos rios foram outros impactos relatados pelas/os pescadoras/es artesanais, agricultoras/es e marisqueiras diante de representantes do Poder Público nos âmbitos municipal, estadual e federal.
“A venda do pescado diminuiu quase 70% em Pirambu desde o aparecimento dessas manchas de óleo. A comunidade pede socorro, mas não sabe mais a quem recorrer, pois quanto mais o tempo passa, mais perdemos para os grandes empreendimentos”, destacou o pescador Robério Manoel da Silva, coordenador da Associação Quilombola do Pontal da Barra e um dos coordenadores do Movimento Quilombola de Sergipe.
Robério da Silva durante audiência em prol dos territórios de vida dos povos e comunidades tradicionais. / Foto: Jhennifer Laruska
DEFESA DOS TERRITÓRIOS DE VIDA
“O cheiro do mangue é o cheiro da minha pele, se o mangue morre eu morro junto com ele”. A declaração da marisqueira Geonísia Vieira, mais conhecida como Nice, moradora do povoado Muculanduba, em Estância, ajudou a temperar o caldo dos relatos emocionantes de lutas e de resistências coletivas por parte daqueles que enfrentam cotidianamente os inúmeros ataques aos seus territórios impulsionaram expressões de solidariedade. Como bem representou a pescadora Clécia dos Santos, moradora do povoado Preguiça, em Indiaroba, “Só quem vive a situação e sente na pele é quem sabe”.
São inúmeros os impactos já sofridos pelos povos e comunidades tradicionais e que demonstram que o aparecimento das manchas de óleo, longe de se tratar de um evento pontual e acidental, representa a continuidade de uma longa e cruel cadeia de descaso e de extermínio dos modos de vida desses povos.
“O avanço da carcinicultura e a demora em garantir a titulação de nossas terras são só alguns dos crimes que enfrentamos e que são acentuados pelo descaso do Estado”, ressaltou José Domenício, representante do movimento quilombola e morador do município de Brejo Grande.
José Domenício durante ato em defesa dos povos e comunidades tradicionais. / Foto: Jhennifer Laruska
“A exploração do petróleo por si só já devasta muito, mas não é só isso. O desmatamento do mangue, os viveiros de camarão e as instalações de resorts e especulação imobiliária impossibilitam as famílias pesqueiras de exercerem suas atividades e tudo isso não é de hoje. É preciso lembrar que os donos de resorts só crescem devido aos pescados vendidos pelas comunidades”, destacou Clécia dos Santos.
DEMARCAÇÃO DE TERRAS
A omissão e o descaso do Poder Público foram questões destacadas de forma unânime pelas comunidades presentes à audiência. Medidas anunciadas pelo governo, como a anecipação do pagamento do auxílio defeso, liberação de recursos para serviços complementares de limpeza do litoral e instalação de barreiras de plástico são vistas pelas comunidades como paliativas e sem eficácia diante da gravidade dos crimes ambientes sofridos cotidianamente por elas.
“O seguro-defeso é um direito e independente desse crime ambiental, muitos pescadores já nem estavam recebendo em dia. Ele não deve ser usado para minimizar os impactos de um crime que é causado pelas empresas com a conivência dos governos. Além disso, nem todos os que estão aqui recebem seguro-defeso”, destacou a extrativista Alícia Morais, moradora do povoado Pontal, em Indiaroba.
A demarcação das terras foi destacada por muitos como uma questão que se arrasta há muitos anos pela morosidade do Poder Público e que possibilita a ocorrência de crimes ambientais como o desmatamento dos mangues e o derramamento de óleo por parte da indústria petrolífera. Foram destacados especialmente a reserva extrativista do sul sergipano e o território quilombola de Pontal da Barra, no município da Barra dos Coqueiros nas reivindicações pela demarcação das terras.
“Não queremos compensação, queremos a demarcação do nosso território, a titulação dos territórios quilombolas. É por isso que os carcinicultores, os donos de resorts e hoteis se sentem à vontade para cercar e avançar sobre o nosso território. A Secretaria de Patrimônio da União (SPU) precisa tomar sérias e urgentes providências sobre isso”, reivindicou José Domenício.
AÇÕES INEFICAZES
Firmemente cobradas pelas vozes presentes à audiência, as representações do Poder Público sentadas à mesa não apresentaram soluções eficazes à resolução dos problemas relatados, a exemplo da superintendente da SPU, Jovanka Leal, quando questionada sobre as medidas que estão sendo tomadas pela SPU para dar celeridade à demarcação das terras indígenas e quilombolas e dos territórios pesqueiros.
“Temos limitações legais na SPU, nem todas as questões ambientais podem ser tratadas como prioridade. O ministro do Meio Ambiente já veio oito vezes a Sergipe, ou seja, estamos tentando resolver. O governo federal segue tentando descobrir quem são os responsáveis por esse acidente”, afirmou vagamente a representante da SPU, em meio às sonoras vaias recebidas pela população presente.
Por sua vez, o diretor-presidente da Administração Estadual do Meio Ambiente (Adema), Gilvan Dias, apresentou as medidas que já estariam sendo tomadas para sanar o problema, mas que logo foram contrapostas pelas comunidades presentes. “Temos funcionários de plantão todos os dias, estamos lidando com o desgaste dos funcionários que têm que percorrer toda a costa realizando a coleta do material. Sergipe é o único estado em que o órgão ambiental tem agido para conter o derramamento com o custeio próprio do estado. Já foram recolhidas 38 toneladas de óleo”, afirmou.
“A cor da praia até hoje está impactada pelo óleo, que chegou a entrar na Foz do Estuário. Nós vimos pessoas da comunidade sendo contratadas para fazer a limpeza, devido à falta de profissionais capacitados para isso. Inclusive, limparam as manchas maiores, mas as menores continuam por lá”, destacou o pescador e educador Genisson Pinto, mais conhecido como “Fio”, morador do povoado Ponta dos Mangues, em Pacatuba.
Segundo o Procurador da República, Ramiro Rockenbach, o governo federal não está tomando as devidas providências quanto à gravidade deste crime ambiental. “Trata-se de um desastre ambiental sem precedentes e cada vez mais lamentamos mais como isso está chegando aos mangues e rios. Não é passeando de helicóptero que se resolve o problema e, independente de quem são os causadores deste crime ambiental, a legislação brasileira prevê a necessidade de ação urgente e imediata por parte do governo federal. Toda esta contaminação poderia ter sido evitada caso o governo tivesse acionado o Plano Nacional de Contingência”, afirmou o procurador, referindo-se ao Plano Nacional de Contingência para Incidentes de Poluição por Óleo em Água (PNC), instituído em 2013, mas extinto pelo governo federal no mês de abril deste ano.
REIVINDICAÇÕES
Na ocasião, a pescadora Claudiane Bispo, moradora do Município de Brejo Grande, leu a carta de reivindicações relatando os impactos do derramamento de óleo no litoral nordestino, que tem como objetivo dialogar com a sociedade brasileira e com o Poder Público. A carta foi entregue às representações do Poder Público presentes à audiência. Acesse aqui a carta na íntegra.
Também estiveram presentes à mesa da audiência representantes da Defesa Civil, da OAB, Ministério Público Federal (MPF), Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF), Procuradoria da República e Governo do Estado, entre outras representações do Poder Público.
Após a audiência, as/os representantes das comunidades seguiram em marcha pelo centro da capital sergipana com faixas, cartazes e gritos de ordem. No percurso, que teve início na Praça Camerino e seguiu até o Calçadão da Rua Laranjeiras, as/os pescadoras/es, as marisqueiras, agricultoras/es e catadoras de mangaba puderam dialogar com a sociedade sergipana a respeito dos impactos sofridos diretamente por elas/eles e sobre as formas de resistência nos territórios.
Genisson Pinto durante ato em defesa dos povos e comunidades tradicionais. / Foto: Jhennifer Laruska
"Seguimos em defesa dos nossos territórios de vida, que são os locais onde moramos, trabalhamos e criamos a nossa família", afirmou publicamente Genisson Pinto, o "Fio". O ato chamou a atenção das pessoas que trabalham no Centro da cidade e da população que por ali transitava, ao entoar o coro dos povos e comunidades tradicionais em defesa dos territórios de vida:
“Tire óleo do caminho que eu quero passar / Tire o óleo do caminho que eu quero pescar / Tire o óleo do caminho que eu quero mariscar / Tire o óleo do caminho que eu quero catar / Tire o óleo do caminho, aqui é meu lugar” (Fio, Pacatuba/Sergipe)
A realização do PEAC é uma medida exigida pelo licenciamento ambiental federal, conduzido pelo IBAMA.
O Programa de Educação Ambiental com Comunidades Costeiras (PEAC) incentiva o fortalecimento dos Territórios de vida dos Povos e Comunidades Tradicionais. A realização do PEAC é uma exigência do licenciamento ambiental federal, conduzido pelo Ibama.