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Documento reafirma compromisso dos povos e comunidades tradicionais com a reprodução da vida e faz um alerta sobre os impactos de megaempreendimentos
“Somos protagonistas da nossa existência, temos autonomia e exigimos a permanência em nossos territórios. Escrevemos nossa luta no chão e nas marés da vida.” (Manifesto dos Povos e Comunidades Tradicionais)
A riqueza da vida a partir das suas dimensões cotidianas foi a grande conexão entre 155 mulheres e homens que protagonizaram o XI Encontro do Programa de Educação Ambiental com Comunidades Costeiras (EPEAC), entre os dias 6 e 9 de junho, em Aracaju-SE. Durante quatro dias, lideranças de 97 comunidades tradicionais do litoral sergipano e norte do litoral baiano, pescadores e pescadores artesanais, marisqueiras, quilombolas, catadoras de mangaba, trabalhadores sem terra (MST), pequenos agricultores e pequenas agricultoras, entre outras representações das terras, das florestas e das águas, além de representantes da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e da Universidade Federal de Sergipe (UFS), compartilharam a força dos saberes e das experiências de vida que pulsam nos seus territórios.
Entre uma mesa de diálogos e uma diversidade de círculos de cultura, músicas e poemas escritos pelas mãos que garantem a pesca e a colheita conduziram o ritmo das resistências que não se silenciam. No poder da memória que expressa a sabedoria ancestral, a palavra dos povos ecoou pela manifestação sagrada de quem sabe re-existir diante da força do tempo e das opressões causadas pelo aprofundamento do atual modelo de desenvolvimento econômico sobre seus modos de vida.
As intensas trocas de conhecimentos sobre os diversos modos de vida dos povos e comunidades tradicionais impulsionadas durante o evento, resultaram no "Manifesto dos Povos e Comunidades Tradicionais”, que tem como objetivo dialogar com a sociedade civil sobre os impactos dos megaempreendimentos sobre as terras e as águas no Brasil, bem como fortalecer a defesa dos modos de vida que compõem o cotidiano dos povos e comunidades tradicionais e que garantem o peixe e o pão-nosso de cada dia, seja no campo ou na cidade.
Território
“O conhecimento transforma o cidadão, nos faz ver e rever o outro lado, o próximo, sentir o outro.” (Joselito dos Santos, de Cachoeira, Jandaíra-BA)
As condições de vida e o cotidiano coletivo da produção do viver foram poeticamente abordados como fio condutor da troca de saberes e experiências no XI EPEAC. No centro da roda, elementos que, através de suas cores, cheiros e texturas, representam a cultura e a história dos povos presentes ao evento. Redes de pesca, bandeiras, produtos artesanais, alimentos, sementes, ferramentas de trabalho, ícones de fé e outros objetos produzidos nos territórios foram a inspiração para a condução dos diálogos, fortalecendo assim a integração dos diferentes saberes e a troca de experiências sobre os modos de vida.
Amplamente utilizada por diversos movimentos sociais, a instalação artístico-pedagógica permitiu aos participantes pisarem simbolicamente nos territórios vizinhos. Inspiradas na genialidade de Frei Betto, as reflexões coletivas giraram em torno do questionamento: “A cabeça pensa onde os pés pisam: o que identificamos de conflitos e ameaças nos nossos territórios? E de resistências?”. Dessa forma, foi possível dialogar sobre estratégias de luta pelo protagonismo e pela permanência das comunidades em seus territórios.
“Se você não valoriza a terra, você não vai trabalhar na terra. O habitar não é só a casa, não é só o teto, é assumir nossa ancestralidade e nossos costumes, ajudar ao próximo, à comunidade. É não fechar os olhos para a comunidade que passa pela mesma situação”, afirmou Claudeane Bispo, quilombola e moradora do povoado Santa Cruz, município de Brejo Grande-SE. “Nós lutamos contra os latifundiários. É difícil, mas a gente resiste. Eles têm a malícia, e nós temos a resistência”, ressaltou.
Ameaças e resistências
“A legislação não entende que ninguém pesca o dia todo e nem todos os dias, nós somos um povo que trabalha a partir do movimento das águas, da lua, da maré, das espécies que impõem processos diferenciados sobre o tempo” (Elionice Sacramento, de Conceição de Salinas-BA)
Especulação imobiliária, restrição ao acesso aos mangues, carcinicultura e a contaminação do rio São Francisco e do Rio Japaratuba foram algumas das ameaças expostas pelas representações das comunidades, a exemplo de Orlando da Silva Dorotea, morador do povoado Abadia, município de Jandaíra (BA).
“Na minha comunidade, foram arrancadas muitas árvores na praça para uma grande obra que nem chegou a se concretizar. Árvores históricas e muito importantes para a comunidade. Se eu tivesse participado desse encontro antes, essas árvores não teriam sido arrancadas. Com a força que ganhei nesse evento, entendi que esse habitar me fala de como mudam nossos locais de morada sem que a gente tenha força pra lutar pela nossa cultura”, emocionou-se Orlando.
Por outro lado, foram destacadas também as resistências que permitem aos povos e comunidades tradicionais fortalecerem-se entre si para enfrentar os conflitos e as ameaças que oprimem seus modos de vida, como as atividades de turismo de base comunitária e os produtos feitos pela fineza do trabalho e da arte.
“Sem território, as comunidades tradicionais não têm vida. Nós só estamos aqui porque lutamos e precisamos nos juntar mais para lutar. Chegamos em Sergipe e foi muito importante ver os povos de várias comunidades, fortalecer o fazer político, pensar. Quem fala por nós somos nós. É importante sair dessa condição de objeto de trabalho, de pesquisa, e temos mudado isso fazendo nós mesmos as pesquisas sobre nós”, emocionou-se Wagner Nascimento, coordenador do Fórum de Comunidades Tradicionais da Região da Bocaina, que envolve os municípios de Angra dos Reis, Paraty e Ubatuba, no litoral do Rio de Janeiro.
Cultura e identidade
“Quando a gente está fazendo arte, não precisa de muito. Só precisa da inspiração que a gente encontra nos nossos territórios. Arte e poesia também são resistência” (Gênisson Santos ‘Fio’, de Ponta dos Mangues, Pacatuba-SE)
São Pedro abençoou e a intensidade de músicas, danças e sabores produzidos nos territórios coloriu o espaço do Oceanário para a realização da V Feira Cultural dos Povos e Comunidades Tradicionais. Embalado por muita animação e forró, o público presente pôde saborear uma linda diversidade de licores, cocadas, mariscos, artesanatos e biojóias, feitos pelas mãos das marisqueiras, catadoras de mangaba, pescadores, camponeses e camponesas que compõem a riqueza dos territórios costeiros.
“Eu não sou feliz, eu sou extremamente feliz”, afirmou Uilson da Silva, morador do bairro Santa Maria em Aracaju, entre um forrozinho e outro. Ele faz parte de um grupo de 31 anos de existência, uma associação de 11 famílias de catadores e catadoras de mangaba que sobrevivem da colheita deste produto. “Estamos todos juntos em defesa das mangabeiras, em defesa de uma área restante. É a última área de extrativismo”, ele conta. “A experiência da mangabeira é uma vida que defende outras vidas. Não só a mangaba, toda a biodiversidade é a nossa riqueza”, complementa.
Em sua quinta edição, a Feira Cultural dos Povos e Comunidades Tradicionais já tem lugar cativo no calendário cultural sergipano. Representa um grande encontro entre representantes de comunidades da costa sergipana e norte do litoral baiano para exposição e comercialização dos produtos fabricados pelas mentes e mãos de quem garante a reprodução da vida em seus territórios.
“Essa feira vai muito além da venda de produtos, é um encontro de experiências, de trocas de culturas”, afirma Ram Sashi, analista de projeto do PEAC e um dos organizadores do evento.
O PEAC
Com abrangência em 95 comunidades tradicionais de toda a costa sergipana – espacializadas em dez municípios – e de Conde e Jandaíra, na Bahia, a realização do PEAC é uma medida de mitigação exigida pelo licenciamento ambiental federal, conduzido pelo IBAMA. Atualmente, o PEAC é executado pela Universidade Federal de Sergipe (UFS) com convênio administrado pela Fundação de Apoio à Pesquisa e Extensão de Sergipe (Fapese/UFS).
O Programa de Educação Ambiental com Comunidades Costeiras (PEAC) incentiva o fortalecimento dos Territórios de vida dos Povos e Comunidades Tradicionais. A realização do PEAC é uma exigência do licenciamento ambiental federal, conduzido pelo Ibama.