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Acolher e problematizar a experiência vivida por mulheres em desastres e crimes ambientais. É essa uma das premissas da “Memória das Águas”, ação de extensão educativa que está ocorrendo nesta semana em Porto Alegre. A ação é promovida pelas Universidades Federais de Sergipe (UFS) e do Rio Grande do Sul (UFRGS), pelo Observatório Popular de violências pela Vida de mulheres de comunidades tradicionais (OPOPVida/UFS), em parceria com o Movimento das Marisqueiras de Sergipe (MMS) e a Clínica Feminista Antirracista Interseccional da UFRGS (CLIFAI).
Com objetivo de proporcionar o intercâmbio entre as marisqueiras de Sergipe e as mulheres do sul, a “Memória das Águas” teve início nesta terça, 3, com a atividade Águas e Amizade, que reuniu mulheres no Cinema Capitólio para exibição do filme “Minha amiga Gilza” e bate-papo com o tema “A amizade como exercício político feminista”. Para Gilsa Maria, liderança do MMS e protagonista do filme, participar do intercâmbio e exibir o documentário que conta um pouco sobre a história de sua vida, é uma oportunidade para compartilhar com outras mulheres experiências comuns. “O meu filme está contando a minha vida e eu sei que tem várias mulheres que passam pela mesma dificuldade que eu passei. É isso que passa dentro de mim e que eu quero mostrar pra elas, a vida que a gente passa e que muitas mulheres vivenciam”, explica.
Já na quarta, 4, a ação de extensão educativa realizou o seminário “Memória das Águas”, promovendo espaços de compartilhamento de experiências entre mulheres e a luta em defesa de seus territórios de vida. Para Nice Dias, liderança do Movimento de Marisqueiras de Sergipe, o intercâmbio tem possibilitado encontros enriquecedores entre mulheres do sul e de Sergipe. “Esse intercâmbio intercala grupos de mulheres e para nós, do movimento, é muito importante conhecer outras mulheres que estão unidas em defesa de seus territórios. Então, encontros como esse nos motivam ainda mais a nos unir. Tenho certeza que o Movimento de Marisqueiras de Sergipe (MMS) vai voltar pra casa com muito conhecimento e sabedoria”, afirma Nice, marisqueira do povoado Muculanduba em Estância.
Nice Dias (à esquerda) e Gilsa Santos, protagonistas do filme "Minha amiga Gilza" | Foto: Gabriela Baum
Segundo a professora da Universidade Federal de Sergipe (UFS) Sandra Raquel de Oliveira, um intercâmbio com caráter nacional e interinstitucional se apresenta como um importante espaço de “articulação e ampliação das estratégias de enfrentamento e criação de perspectivas emancipatórias, não somente de mulheres de Povos e Comunidades Tradicionais, mas de todos os povos, em sua diversidade regional, cultural e especificidades dos impactos socioambientais decorrentes dos atuais desastres provocados pelo desenvolvimento neoliberal”, explica Sandra que também é coordenadora acadêmica do Programa de Educação Ambiental com Comunidades Costeiras (PEAC).
Com as enchentes e alagamentos que assolaram o Rio Grande do Sul em maio deste ano, atingindo 2,3 milhões de pessoas em 463 cidades – cerca de 93% do território sul grandense – o intercâmbio que estava previsto para o final do primeiro semestre de 2024, foi adiado para este mês de dezembro, ao passo que a execução da “Memória das Águas” se tornou uma prioridade frente à demanda de fortalecimento sociopolítico das mulheres do nordeste e do sul.
Para a terapeuta ocupacional e integrante da Justa Trama Fios Ecológicos de Porto Alegre, Katia Barfknecht, receber as mulheres marisqueiras de Sergipe tem sido um grande aprendizado para ressignificar a relação com as águas. “É impressionante a afetividade, carinho e proximidade que as marisqueiras têm com as águas, isso é fundamental para as mulheres daqui do Rio Grande Sul e de tudo que enfrentamos com as enchentes, com o medo que ficamos dessas águas, e as marisqueiras, ao mesmo tempo, falando sobre essa proximidade das águas, esse brincar, esse se divertir. Então estamos conversando e percebendo o quanto que essas águas são boas, o quanto que elas trazem uma fluidez, alegria, seguimento”, explica Kátia.
Marisqueiras participam de formação sobre Justiça Climática | Foto: Gabriela Baum
Arlene Costa, marisqueira do povoado Porto do Mato e liderança do MMS, acredita que o intercâmbio com as mulheres do sul, especialmente, as que viveram de perto as enchentes de maio, está fortalecendo a esperança entre elas na defesa de seus territórios. “Esse intercâmbio com essas mulheres que ficaram vulneráveis , que perderam suas casas nas enchentes é muito importante porque o encontro com elas está nos mostrando que somos capazes de transmitir a esperança, nós trouxemos pra elas a esperança e nós percebemos nelas a esperança”, afirma.
Articulação entre Universidades e Movimentos Sociais
Oficina com o Grupo Auê, Movimento e Clínica Feminista Antirracista Interseccional | Foto: Grupo Auê
Durante a pandemia da Covid-19, os índices de violências domésticas contra mulheres aumentaram drasticamente. Segundo levantamento do Datafolha de 2021 encomendado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 4,3 milhões de mulheres brasileiras de 16 anos ou mais, foram agredidas fisicamente com tapas, socos ou chutes. Isso significa dizer que durante a pandemia, a cada minuto, 8 mulheres apanharam no Brasil. Foi, portanto, diante desse contexto e da demanda de cuidado em saúde mental coletiva com mulheres, que a professora da UFS Michele de Freitas, coordenadora, na época, do Observatório Popular das Violências e pela Vida das Mulheres de Povos e Comunidades Tradicionais e a professora Simone Paulon, coordenadora da Clínica Feminista Antirracista Interseccional (CLIFAI) aproximaram suas perspectivas para tornar efetiva a articulação entre as duas organizações. “São duas extensões feministas que pensam o feminismo no chão das comunidades, das periferias da cidade, junto com mulheres que não tem a cara de um feminismo acadêmico. A luta feminista é uma luta também socioambiental”, explica Michele de Freitas.
Foi a partir desse contexto que a CLIFAI, o Observatório e o Movimento de Marisqueiras realizaram seminários online para formular estratégias de cuidado, o que, posteriormente, possibilitou em julho de 2022, a articulação presencial entre as organizações durante o Encontro das Marisqueiras (EMARIS), em Sergipe, e agora durante o intercâmbio em Porto Alegre.
Para a professora e integrante da CLIFAI, Gislei Domingas, as ações realizadas entre as equipes extensionistas, os movimentos sociais e histórias singulares de mulheres, permitiram ao intercâmbio se tornar um espaço de troca de saberes capaz de oferecer aos grupos envolvidos, dispositivos que ampliam as perspectivas de atuação. “Penso que este intercâmbio está permitindo às lideranças do Movimento expandir a luta em defesa de seus direitos, a partir da experiência das Promotoras Legais Populares, além de possibilitar aos coletivos de mulheres da rede CLIFAI o contato com a defesa dos territórios a partir da educação ambiental e ampliar a atuação das universidades ofertando formações articuladas com demandas populares”, explica Gislei que realizou pesquisa-intervenção de pós-doutorado junto às marisqueiras de Sergipe e a equipe do Observatório.
Ainda como parte da programação do intercâmbio, na noite do dia 7, quarta, foi lançado o livro “Direitos Humanos: A & Z”, cujo capítulos possuem autoria das marisqueiras e lideranças do MMS, Elienaide Flores e Rosimeire Batista. Para Rosimeire, ver seu texto publicado é a realização de um sonho de infância.
Rosimeire Batista autografando livro. | Foto: Divulgação
“Um dia me convidaram pra entrar no movimento das marisqueiras de Sergipe e eu entrei. E um dia eu recebi o convite de Yasmin para escrever um livro. Eu não acreditei, e ela repetiu. ‘Sim, para escrever um livro’, eu aceitei. E nesse livro meu sonho pode se realizar. Eu escrevi um texto, escrito por mim, uma mulher marisqueira, pescadora artesanal que veio de família pobre que sobrevive do mangue, da pesca, da filetagem do camarão. A minha felicidade hoje é estar numa universidade pública federal como a UFRGS, e ver a universidade falando sobre mim, falando sobre meu texto, dando autógrafos, então estou realizando um sonho de criança”, explica.
Observatório Popular das Violências e pela Vida das Mulheres de Povos e Comunidades Tradicionais
Marisqueiras de Sergipe participam de performance com Parangolé | Foto: Gabriela Baum
Criado com objetivo de dar atenção às práticas de produção de conhecimento e práticas de cuidado colaborativo e de rede, o Observatório vem dedicando suas ações a refletir e incidir no contexto de violação de direitos que marisqueiras e outros coletivos de mulheres de comunidades tradicionais têm enfrentado. Durante os dois últimos anos, o Observatório realizou diversas oficinas de preparo para a participação das mulheres marisqueiras durante esta semana de intercâmbio, com intuito de que ao retornarem a Sergipe, as lideranças possam compartilhar as experiências vividas com o conjunto do movimento e outras mulheres.
Segundo a professora da UFS e coordenadora do Observatório, Lívia Cardoso, o intercâmbio permitirá a formulação e o fortalecimento de modos para enfrentar as violências em contextos de crimes ambientais. “Durante essa semana, o Movimento conheceu diversas experiências, como é o caso da ONG Themis, responsável por formular o protocolo de atuação para enfrentar as violências de gênero em contexto de desastres socioambientais. Nós também pretendemos fortalecer junto ao movimento, modos outros de enfrentar essas violências apontando a necessidade de intervir em políticas públicas”, explica.
Oficina com o Grupo Auê, Movimento de Marisqueiras de Sergipe e Clínica Feminista Antirracista Interseccional | Foto: Gabriela Baum
Para 2025, o Observatório pretende, após intercâmbio, realizar o aprofundamento dessas temáticas através de pequenos encontros regionais que culminará em um seminário previsto para julho de 2025. Com objetivo de propor uma agenda de produção de dados e práticas de cuidado e enfretamento para as mulheres de povos e comunidades tradicionais, a expectativa, segundo a professora Lívia, “é levar algumas das mulheres aqui do Sul que estão participando do Intercâmbio para participarem do nosso seminário em julho de 2025. Também temos o objetivo de produzir um livro exclusivo sobre memórias das águas, reunindo capítulos de mulheres de comunidades que possuem diferentes relações com as águas, pois sabemos que as marisqueiras possuem uma memória positiva com as águas, mas para as mulheres aqui no sul, essa memória das enchentes e da água suja ainda está muito presente, então esse livro vai reunir essas a complexidade dessas memórias”, explica, Lívia Cardoso.
A realização do PEAC é uma medida de mitigação exigida pelo licenciamento ambiental federal, conduzido pelo IBAMA.
O Programa de Educação Ambiental com Comunidades Costeiras (PEAC) incentiva o fortalecimento dos Territórios de vida dos Povos e Comunidades Tradicionais. A realização do PEAC é uma exigência do licenciamento ambiental federal, conduzido pelo Ibama.