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Em nenhuma sociedade é de bom tom entrar na casa alheia sem permissão. Geralmente, são os donos das casas que dizem quando, como e se um não-morador pode entrar - e até onde pode entrar! Por que com os Povos e Comunidades tradicionais seria diferente?
Para fazer cumprir o direito de opinar sobre quaisquer intervenções em seu território e auxiliar os governos a tomar decisões que respeitem seus direitos, as comunidades de Resina, Carapitanga, Brejão dos Negros e sede de Brejo Grande-SE, integrantes do Território Quilombola Brejão dos Negros, pactuaram a construção de um protocolo de consulta livre, prévia, informada e de boa-fé, que definirá como deverão ser consultadas em caso de decisões que afetem seus modos de vida.
A deliberação foi feita em amplas assembleias realizadas pelas quatro associações comunitárias em parceria com o Programa de Educação Ambiental com Comunidades Costeiras (PEAC), Cáritas Brasileira Regional - Nordeste 3 e a 350.org Brasil, nos dias 8, 9 e 10 de julho.
Gabriela Murua, membra da equipe técnica do PEAC, explica que a construção dos protocolos é extremamente necessária para reivindicar o cumprimento do direito à autoidentificação e a autodeterminação dos Povos e Comunidades Tradicionais (PCTs) como prevê a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário.
“Por serem povos tradicionais que existiam antes mesmo de o Estado Brasileiro se chamar Estado Brasileiro, eles têm direito aos seus territórios e aos recursos naturais que deles provém. Portanto, se o Estado desejar colocar algum empreendimento em seus territórios é preciso submeter o projeto à consulta”, explica Gabi.
Embora amparados por vários instrumentos jurídicos, os direitos dos PCTs são violados de forma recorrente no Brasil. “Por exemplo, é muito comum as empresas dizerem que consultaram as comunidades ao realizar uma audiência pública, mas a audiência não é válida porque ela não é prévia, ela acontece quando o empreendimento já está oficializado”.
É nesse momento que as comunidades reivindicam o direito de consulta junto ao Ministério Público Federal (MPF), que normalmente pede o protocolo como uma espécie de passo a passo de como o Estado e o empreendimento devem entrar em contato, respeitando suas diferenças, seus modos de vida e de organização.
Entenda o que são os protocolos de consulta e como ele começou a ser utilizado no Brasil com o filme “Protocolos de Consulta: Instrumento para a Defesa de Territórios e Direitos”. Assista aqui.
Instrumentos de defesa
“[Os protocolos] são uma maneira de adquirir ferramentas de defesa do nosso território que vem sofrendo vários ataques, várias investidas de empresas de exploração que impactam nossa comunidade. É uma forma de a gente possuir documentos legais mostrando como as empresas precisam chegar, já que elas chegam de uma forma agressiva, sem conversar, passando por cima da gente e do nosso modo de vida”, determina Eneias Rosa, pescador e presidente da Associação da Comunidade Tradicional dos Pescadores Artesanais de Resina.
As assembleias que decidiram pelo início da construção dos protocolos aconteceram dentro de um processo de reconhecimento e organização comunitária iniciado pelas associações comunitárias em diálogo com o Fórum de Povos e Comunidades Tradicionais de Sergipe (FPCT-SE), movimento social que atualmente ocupa duas cadeiras no Conselho Estadual de Gerenciamento Costeiro (GERCO), espaço que vem construindo as regras para a ocupação da costa de Sergipe, aprovando uma série de normas que favorecem a expansão de empreendimentos em territórios tradicionais
Boa parte dessas ações são assessoradas pelo Núcleo de Pesquisa e Gestão Compartilhada do PEAC, pela Cáritas e pela 350.org através de formações de educação popular, feiras agroecológicas e construção de instrumentos de defesa que visam proteger os territórios das ameaças produzidas pelo capital e legitimadas pelo Estado.
Outro instrumento que está sendo debatido pelo Território Quilombola Brejão dos Negros é a atualização de sua cartografia social, um mapeamento que considera sua diversidade e modos de vida- completamente diferentes dos de uma sociedade moderna ocidental, como os grandes centros urbanos - a fim de romper com sua invisibilidade dos mapas oficiais.
A construção dos instrumentos de defesa protagonizados pelas comunidades é de fundamental importância para atuação dos Povos e Comunidades Tradicionais na gestão compartilhada, exigindo que seus direitos sejam respeitados. “É justamente para dizer nossa opinião e defender nosso povo”, finaliza Eneias.
As respostas das crianças
Um exemplo da forma não-ocidental de viver preservada pelas comunidades tradicionais é a importância da opinião das crianças, dos jovens e dos adolescentes nos processos de decisão sobre a comunidade. Nas assembleias elas fizeram questão de destacar a necessidade de ouvir os mais novos durante os levantamentos, pois são eles que representam o futuro e a continuidade do grupo.
Esse é um motivo de comemoração para Crislane Santos. Recém-empossada presidente da Associação da Comunidade Remanescente de Quilombo do Povoado Carapitanga, ela estimula as pessoas mais novas e as mulheres a participarem de espaços políticos como as assembleias. “Muitas vezes a timidez impede a participação. E ao longo da vida a gente também sofre muito preconceito. Eu mesma já fui desestimulada por ser mulher, mas agora estou animada para tocar o movimento”.
No final, o grito de uma gente que ri quando queria chorar, mas luta, não apenas aguenta:
“Essa luta é nossa, essa luta é do povo
É nos quilombos que constrói um Brasil novo”
O Programa de Educação Ambiental com Comunidades Costeiras (PEAC) incentiva o fortalecimento dos Territórios de vida dos Povos e Comunidades Tradicionais. A realização do PEAC é uma exigência do licenciamento ambiental federal, conduzido pelo Ibama.