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Ao longo de seis décadas, mangabeiras são vidas que têm salvado outras vidas no bairro Santa Maria

  • 23-02-2022

Resistindo a projeto de empreendimento imobiliário que provoca impactos socioambientais, famílias lançam campanha por “nenhuma mangabeira a menos”

 

“Destruir as mangabeiras é destruir a minha vida, minha história”. Uma frase de poucas palavras, mas carregada de um sentido profundo, que o modo de vida individualista, que insiste em apartar ser humano e meio ambiente, não alcança. Na afirmação de Dona Rosenaide Sá, a relação humanidade-natureza extrapola a ideia de consumo e diz respeito à própria condição de existência.

Idosa, mulher negra, Dona Rosenaide é uma das moradoras do território tradicional de catadoras de mangaba do bairro Santa Maria, em Aracaju. Nesse chão e no vínculo com a árvore que é símbolo do Estado de Sergipe – instituída através do Decreto 12.723/92 – Rosenaide criou seus nove filhos e filhas e agora ajuda na criação dos netos.

O depoimento de Rosenaide é emblemático do elo entre as famílias que há mais de seis décadas não “apenas” catam mangaba, mas vivem e preservam o ecossistema daquela região. E tudo isso sem um apoio efetivo e permanente do Estado.

Aos verbos catar, viver e preservar somou-se, nos últimos anos, outra sentença para as famílias extrativistas da mangaba do Santa Maria: resistir. E essa resistência, às articulações entre poder público e iniciativa privada que querem justamente separar gente e território, tem sido feita com organização comunitária, mobilização social, cultura popular, alimentação saudável e coletiva e celebrações ecumênicas.

Um novo episódio dessa resistência aconteceu na manhã dessa terça-feira, 22, quando as famílias que ali vivem ressaltaram, mais uma vez, que “mangabeiras são vidas que salvam outras vidas” e, por isso, afirmam que “nenhuma mangabeira a menos”, afinal destruir a natureza é destruir também vidas humanas.

E aqui é necessário frisar: se não há ser humano sem natureza, não há também, numa mesma cidade, um território desconectado do outro. Por isso, ameaças à área das mangabeiras podem impactar em outros pontos de Aracaju.

“Ali está a última reserva de mangabeira com a comunidade de extrativismo que há em Aracaju. Toda aquela região era constituída por muitas mangabeiras e foi sendo devastada com o crescimento da cidade. São pessoas que prestam um serviço ambiental enorme à sociedade, que ao cuidar de si mesmas cuidam das árvores, preservam o ambiente e melhoram a qualidade de vida de toda a cidade, contribuindo para amenizar as ilhas de calor, ajudando na retenção hídrica do excesso de chuvas, evitando alagamento na região...Todo esse serviço ambiental está ameaçado diante do conjunto habitacional que a Prefeitura de Aracaju propõe”, apontou Christiane Campos, professora da Universidade Federal de Sergipe e coordenadora do Programa de Educação Ambiental com Comunidades Costeiras (PEAC/UFS).

Christiane alerta ainda que “aqueles solos são bastante fragilizados, é uma região de cordões litorâneos, em que há uma instabilidade desse solos, é uma área de brejo, que cumpre essa função de retenção hídrica”. Por isso, ela diz, “se toda aquela área for impermeabilizada com estradas e casas, o risco de alagamentos e de rachaduras nas casas é grande”.

A crítica da professora da UFS não deixa dúvidas: além de destruir modos de vida que devem ser preservados, a proposta da Prefeitura de Aracaju não atende seriamente qualquer demanda por moradia, afinal tende a colocar pessoas em casas que oferecerão riscos dia após dia.

Importante registrar que, enquanto utiliza recursos públicos para falar em suposta qualidade de vida, a Prefeitura de Aracaju já devastou a vegetação que formava a zona de amortecimento, que é uma exigência legal para a criação de reserva extrativista e que tem papel relevante para reduzir os efeitos de borda do empreendimento.

Vale lembrar também que, em dezembro de 2020, uma equipe formada por membros do PEAC e da Associação de Geógrafos Brasileiros produziu um relatório multidisciplinar com elementos técnicos em favor dos direitos das famílias catadoras de mangaba.

O documento - entregue tanto à comunidade quanto a órgãos públicos, como o Ministério Público Federal - apresenta uma análise ambiental da área (meio biofísico e impactos ambientais cumulativos), dados socioespaciais (histórico de ocupação e atividade extrativista na área, ações do Estado e pressão imobiliária, aspectos socioeconômicos, culturais e os direitos territoriais das comunidades tradicionais) e recomendações, a exemplo da criação de uma reserva extrativista em área maior que a proposta do Executivo municipal, garantindo a permanência da comunidade extrativista.

Até aqui, a Prefeitura de Aracaju segue ignorando a história, os dados, as mangabeiras, as famílias e os conhecimentos científico e tradicional, que estão chamando a atenção para os perigos de curto, médio e longo prazo.

Mas as famílias daquele território seguem resistindo - com a colaboração de instituições e entidades da sociedade e com o apoio de alguns parlamentares -, ecoando que “mangabeiras são vidas que seguem outras vidas” e lutando por “nenhuma mangabeira a menos”.

Programa Peac

O Programa de Educação Ambiental com Comunidades Costeiras (PEAC) incentiva o fortalecimento dos Territórios de vida dos Povos e Comunidades Tradicionais. A realização do PEAC é uma exigência do licenciamento ambiental federal, conduzido pelo Ibama.